Debates acalorados surgiram nas redes sociais nas últimas semanas, depois que um grande estudo internacional afirmou que não há evidências de que as práticas complementares tenham eficácia nos casos de autismo. Os ingredientes para polêmica eram claros, mas, se quisermos conversar de forma produtiva, é preciso colocar a bola no chão e abandonar o tom de briga de bar. Para minha sorte, coincidentemente ou não, meu livro mais recente – Sofrimento não é doença (Editora Sextante) – passa tanto pelo tema da medicina alternativa como pelo momento atual do autismo, o que facilitou bastante meu trabalho de compreender os vários lados dessa história.
Boa parte das pessoas que optam por práticas complementares em medicina sabe que elas não têm comprovação científica, ou ao menos que “os médicos não acreditam” nelas. Longe de mim fazer a defesa de intervenções pseudocientíficas, mas é preciso reconhecer que, se elas resistem tanto tempo, não é apenas porque o ser humano é indiferente às evidências científicas. Não é por acaso que existe medicina alternativa, mas não engenharia alternativa. Porque medicina não é engenharia de gente: as práticas complementares oferecem escuta, acolhimento, fornecem explicações compreensíveis (mesmo que erradas), coisas que as pessoas buscam quando estão sofrendo. Daí seus usuários ficarem tão nervosos quando novas pesquisas derrubam sua eficácia: muitas vezes, eles sentem como um ataque pessoal.
Se o assunto é o transtorno do espectro do autismo, então, os afetos envolvidos podem ser ainda mais intensos. Estigmatizado até o começo deste século, nas últimas décadas o autismo deixou de ser um diagnóstico que despertava preconceito ou piedade para se tornar uma forma de identidade, tanto de pacientes como de familiares. Ou você conhece algum outro diagnóstico que as pessoas tornem público em “chás revelação”, como os que hoje ocorrem nas redes sociais quando alguém descobre que faz parte do espectro? Qualquer coisa que seja interpretada como uma redução de direitos ou cerceamento das possibilidades de tratamento sofrerá resistência por parte dessa população que demorou tanto tempo para conseguir o direito de se tratar, estudar etc.
Então surgem manchetes dizendo que tratamentos alternativos não funcionam para o autismo. Claro que iria dar briga. Mas o estudo científico não dizia exatamente isso. Vamos ao terceiro aspecto dessa história.
Cientistas das universidades de Paris Nanterre, Paris Cité – na França – e de Southampton – no Reino Unido – se propuseram a avaliar todas as metanálises já publicadas sobre tratamentos como terapia com animais, musicoterapia, uso de ocitocina, probióticos, vitamina D, só para ficar em alguns exemplos. Lembrando que uma metanálise é um estudo que reúne resultados de vários outros estudos, o que aumenta muito o número de participantes envolvidos, melhorando a precisão dos resultados. Seguindo padrões rigorosos de avaliação e reunindo dados de mais de dez mil pessoas, descobriram que só 17% das pesquisas eram de boa qualidade. Quando mediam os efeitos sobre sintomas centrais do autismo, nenhuma prática demonstrou efeito significativo em estudos bem feitos, a não ser a administração de ocitocina, que comprovou levar a uma pequena redução de comportamentos restritos ou repetitivos em adultos.
Algumas técnicas até mostraram efeitos grandes, como terapia com animais, musicoterapia ou atividade física, mas os estudos não eram precisos. Imagine que alguém combine de te encontrar toda semana, meio-dia, num restaurante, mas às vezes chega antes das 10h, outras depois das 14h e algumas vezes não aparece – não dá para confiar, certo? Pois então: os estudos tinham “intervalos de confiança” muito grandes do ponto de vista estatístico, o que significa que não podemos saber ao certo se, ao serem repetidas, essas intervenções irão ou não funcionar.
Eles não provaram que os tratamentos não funcionam. Demonstraram, isso sim, que não foi possível ainda ter certeza da eficácia. Com ênfase no ainda – vários merecem ser testados novamente, com estudos maiores e mais rigorosos. Para mim, longe de ser um ataque a tratamentos para o autismo, trata-se da tentativa de garantir que os pacientes saibam se a intervenção à qual estão se submetendo já foi testada e comprovada, buscando encontrar as melhores opções possíveis. Podemos chamar isso de qualquer coisa, menos de um ataque. Eu, particularmente, chamo de respeito.